sexta-feira, 13 de julho de 2007

Partiste



"Partiste. O avião descolou levando contigo os meus últimos batimentos cardíacos. Desde essa altura que vivo em stand by. Antes dormia no meio desta cama. Quando decidimos começar a dormir juntos e já frescos da paixão que nos fazia mergulhar nela ainda cedo, irritava-me que tivesse de dormir encolhida para te dar espaço. Ocupavas o teu espaço e o meu. No verão não havia lugar para onde me virasse em que o teu calor não me inflamasse a pele. Sentia-me constantemente em brasa… Hoje continuo a dormir encolhida, mas do teu lado já não vem calor, apenas um vazio gelado que me intimida e não me permite regressar ao centro da cama. Prefiro ficar encolhida e durante breves segundos após acordar, ainda acreditar que lá estás.

Partiste. Foste meu de empréstimo. Prolongaste as tuas férias e entraste confortavelmente na minha vida. Quando, por sua vez, a tua vida exigiu a tua presença, descobri que o lugar que tinha nela era menor do que o que tinhas na minha. Dizias que voltarias ou que em breve me pedirias para ir ter contigo, mas eu sabia a verdade. O que tínhamos habitava estas ruas que tão bem conheço, estas paredes que ainda guardam os nossos segredos. Fora delas, tudo se esbatia em fumo. Aqui podias ser quem quisesses, aí és outro, e esse outro não me conhece da mesma maneira.

Partiste. Como sabia que farias um dia. Estava escrito nos teus olhos mesmo quando me prometias que não seria por muito tempo. Mesmo quando nos amávamos, lia-te a despedida no rosto.

Partiste. Conhecemo-nos no Algarve num dia de céu encoberto. Pela primeira vez na vida fazia férias sozinha. Assim que cheguei fui para a praia. Pouco me importava que houvesse pouco sol, não queria perder um minuto das minhas férias. Deitei-me e comecei a ler. Já não me recordo do livro, presumo que não me tenha marcado. Saíste da água e passaste por mim. Não te vi, apenas a tua sombra quando passaste junto a mim. Desisti do livro e atirei-o para um canto onde pudesse fazer companhia à areia. Olhei em volta e ali estavas tu, sentado a olhar para o mar. Tinhas um ar perfeitamente normal mas qualquer coisa em ti levou-me a crer que não eras de cá. Exibias um ar apaixonado e fascinado demais para seres português. Nós também nos apaixonamos, nós também nos fascinamos, mas nunca o mostramos do modo como o fazias. Tudo era novidade invadindo-te a vista. Quando me apanhaste a mirar-te, sorriste. Sorrimos os dois. O tempo passou. Tu permanecias encantado com tudo o que te rodeava, enquanto eu, deitada de barriga para baixo, tentava combater o sono que me começava a invadir. O sol permaneceu sem aparecer, mas a aragem quente não nos permitia arrepender da nossa decisão. Vieste ter comigo quando levantei a cabeça à procura do cão que ladrava incessantemente e perguntaste-me se sabia falar inglês. Respondi-te que sim, e no momento em que te olhei nos olhos senti o meu vocabulário abandonar-me. Parecia que todos aqueles anos de estudo e as horas a ver filmes americanos deixaram-me com apenas duas palavras na mente, yes e no. Sei que não achas, mas repito, és lindo. E quando sorris, o sol brilha mais forte. Ainda me lembro da nossa primeira conversa. Falámos sobre as últimas férias. Tinhas estado no Havai e eu, vergonhosamente, admiti que não tinha férias há três anos. E voltaste a sorrir.

Partiste. Tornámo-nos inseparáveis e ultrapassaste as minhas barreiras construídas ao longo dos anos. Devia tratar-te com desconfiança e evitar ficar muito tempo sozinha contigo. O mundo em que vivemos e o excesso de informação tornam-nos paranóicos. Podias ser um psicopata qualquer. Perdoa-me, mas não resisto a sorrir. Hoje sei que és incapaz de fazer mal a alguém. Talvez apenas a ti próprio, se assim tiver de ser. Conquistaste-me ao quarto dia. Durante o jantar falaste sobre a tua família e a tua terra. No momento em que me contaste que a tua irmã mais nova tem o sindroma de down e como a amaste desde o primeiro dia, senti-me grata por ter sido teimosa e ido para a praia naquele dia. Confessaste que ela era a mulher que mais amavas na vida, mais ainda do que a tua mãe. Quando afirmaste que havia algo no meu sentido de humor que te lembrava ela, não me ofendi, senti-me lisonjeada.

Partiste. Quando nos beijámos pela primeira vez, apanhaste-me de surpresa. Achava-te sincero e meigo demais para imaginar que pensavas em mim dessa maneira. Logo eu, a eterna maria rapaz. Não resisti… nem quando me convidaste a entrar no teu quarto… nem quando me despiste e disseste que era linda… nem quando fizemos amor e no meio de toda a loucura rias-te sempre que eu verbalizava pensamentos incoerentes em português.

Partiste. Cedo aprendeste a dizer algumas palavras em português. Café… sal… comida… amigo… beijo…

Partiste. As minhas férias acabaram cedo demais mas tu ainda tinhas dois meses para me oferecer. Pedi-te que viesses para Lisboa comigo e tu vieste. Durante o dia, enquanto eu trabalhava, eras turista, à noite eras meu.

Partiste. Acordei cedo no dia da tua partida. As tuas malas junto à porta exigindo que te despachasses. Despedimo-nos e prometeste voltar, mesmo que ambos soubéssemos que provavelmente não o farias. Durante os meses seguintes o telefone tornou-se no meu melhor amigo.

Partiste. Sento-me nesta cadeira velha e olho pela mesma janela pela qual olhavas tantas vezes. Tens razão, as nuvens de Lisboa têm um ar mais pacífico do que quaisquer outras. Agora poderás vê-las melhor. Ainda seguro a carta que a tua mãe me enviou. Durante os meses após a tua partida nunca imaginei que eles soubessem da minha existência. Mas sabiam, tal como descobriram a minha morada no meio dos teus papéis ao abandono.

Partiste. Nunca mais voltarás. Deixaste-nos para sempre. Tenho medo de que o teu rosto se apague da minha memória.

Partiste. Finalmente vou à tua terra. Não para passar as férias contigo como imaginei, mas para me despedir de ti. Vou conhecer a tua vida, mas tu já não estarás lá. Morreste. Afogaste-te no lago ao pé da tua casa. O mesmo onde ensinaste as tuas irmãs a nadar. Preferiste ignorar que tinha chovido na noite anterior e a água estava carregada de lodo.

Partiste. Sei que nunca te disse isto… Acho que te amei. Foste a luz que me permitiu caminhar e ainda hoje brilhas.

Partiste."

11 comentários:

João Roque disse...

Texto belìssimo, muito forte, comovente e muito bem escrito.
Fiquei emocionado com esta tua descrição, quer seja biográfica ou pura ficção.
Obrigado pela partilha.
Bom fim de semana.
Beijoquitas.

Miss Vesper disse...

não sei o que senti ao ler o teu texto... foi um misto de sensações que não consigo explicar... talvez nelas inclua a palavra afogar.
neste momento é a palavra que mais sentido me desperta diariamente.

palavras lindas, emoção premente, belo, simplesmente belo.

beijinhos

Anita disse...

pinguim e cris: ora sejam benvindos a este meu pequeno estaminé… não sabem o quanto fico contente com a vossa visita… o meu muito, muito obrigado aos dois…

Por aqui haverá de tudo um pouco, como já aqui o disseram, desde posts bons a posts fraquinhos ;)… mas com a certeza de que em cada linha rabiscada haverá muito do meu espírito e do meu coração e que ambos possam ser partilhados convosco e com os meus restantes visitantes, aconchega tanto um como o outro… :)

Sinto-me lisonjeada que tenham gostado deste meu pequeno texto. Acho que estou pouco habituada a elogios, de modo que ainda estou um pouco abananada, especialmente, vindo de dois escritores que eu tanto gosto de ler… novamente, muito obrigado…

Beijinhos aos dois

Catwoman disse...

Pois eu também gostei :) E fico contente que tenhas tomado a decisão de publicar aqui alguns dos teus textos. Sendo leitora de muitos deles a nível privado durante muito tempo, sempre achei que mereciam um público mais vasto lol e como podes ver, eles encontram a sua casa em pessoas tão especiais como a Cris e o Pinguim. Por mim, continuo a gostar do que escreves, como sempre ;)

Beijocas

Miss Vesper disse...

anita, os elogios são muito merecidos, acredita;)

o teu texto tocou-me de forma profunda e no meu pulsar ficou a certeza...

pena é que a vida nos troque as voltas e nos "condene" ao seu ritmo. the right person on the wrong time... the right time on the wrong person... and sometimes simply the right person, never to possibly be... that's me.

um beijinho grande e continua por favor ;)

Anita disse...

catwoman: ora ora... e ao quarto post ela aparece ;)

obrigado pelas palavras de apoio, sabes melhor do que ninguém como por vezes preciso delas... tenho a tendência defeituosa de me deixar levar pelo lado negativo da balança :(

quero dar-te as boas vindas e agradecer-te a tua visita... que venham muitas mais...

Foste, de facto, a minha primeira leitora e apesar de sermos amigas, sempre achei que eras imparcial nos comentários que fazias, e agradeço-te por isso... sempre soube que podia contar contigo para me apontar os momentos menos brilhantes lol... já há muito tempo que entupo o teu pc com desenvolvimentos e acrescentos de uma determinada história que passou agora a ser, carinhosamente, apelidada de "história interminável", uma vez que aquilo dura e dura e dura :s... Mea culpa! O próximo arranjo da máquina pago eu lol.

Beijinhos

Anita disse...

cris: acho que não há nada na minha vida que não ande de voltas trocadas... de há duas semanas para cá que as coisas parecem ter levado uma sacudidela... assim de um momento para o outro... e o pior é que não sei dizer se para melhor ou pior... acho que estou perigosamente a entrar na auto-destruição do "the right time on the wrong person" :s

Beijinhos

Anónimo disse...

Ao cuidado da venerável Rainha deste burgo:

Anita,

Eu li o teu texto e gostei muito. Da primeira vez que o li senti intensamente a tua dor, de tal forma que quis saber se era verdade aquilo que me contavas. Se fosse verdade então tu tinhas motivos autênticos para sofrer, ao contrário de mim que sou princípio e fim. Eu crio os meus problemas e nada me é alheio...

É ao ler textos como o teu que eu percebo que estou a perder a capacidade de amar. Há uma inocência que normalmente se perpétua através da sucessão de amores. É precisa essa inocência para se amar alguém. A minha perdeu-se de forma abrupta e eu não quero recuperá-la. E por isso vivo no limbo... De um lado, a necessidade de amar para sentir e pensar profundamente e do outro, o cepticismo que me acompanha e me ultrapassa. Tudo isto para dizer que ao ler segunda e terceira vez percebi que, apesar de querer muito, eu nunca poderia ser o rapaz da história ou mesmo tu...

Anónimo disse...

Esquece, isto são os meus humores... já passou... eheheh...
É por isso que não crio nenhum blog. Havia de querer sempre apagar o que tinha escrito... :)

Anita disse...

senhor do mundo: como não sei bem que parte do teu comentário é que queres que esqueça, vou arriscar e responder na mesma...

Para já, fico sensibilizada que tenhas gostado do texto (espero que isso não se tenha alterado com a mudança de humor lol).

Entendo perfeitamente o que dizes e acho que a expressão que usaste sobre ser-se o princípio e o fim de tudo é perfeita... creio que também sou um pouco assim...

Eu acho que nós nunca perdemos verdadeiramente a capacidade de amar, simplesmente enfrentamos longos períodos da nossa vida em que não surge ninguém que nos desperte dessa dormência... mas tal como não controlamos os batimentos do nosso coração, também não controlamos quando ou quem amamos... mesmo que não queiramos ou julguemos não ser capazes, a verdade é que nenhum de nós está livre de ver esse sentimento nascer ou renascer...

Felizmente ou infelizmente, ainda não o consegui definir, a minha vida afectiva parece destinada ao fracasso, não por problemas na minha capacidade de amar, mas sim na área da retribuição... tenho a triste tendência a deixar-me seduzir por quem não pode ou não quer retribuir... mais parece uma condição fundamental para que o meu interesse se manifeste... é a minha auto-sabotagem no estado puro...

Beijinhos

P.S. - Uma vez que fui promovida a Rainha, faço agora o meu primeiro pedido real... seja com que humor for, não deixes de fazer os teus comentários sempre que quiseres... gosto das tuas visitas :)

Anónimo disse...

Alteza,

Vou dar provimento ao seu pedido. :)

Eu só não queria que ficasses a pensar eu estou sempre triste ou a sofrer. Afinal, quase sempre vem à baila o tema do sofrimento, e eu gosto de falar disso, mas não te quero maçar...

Quanto aos teus problemas (ou não...) com os homens, deixa-me sossegar-te: há por aí muitos homens porreiros... eu conheço alguns... seguramente andam desencontrados. Temos de convocar os homens jeitosos do reino para ocuparem a vaga de rei do Círculo...

Um beijo no anel real,

O bruxo real,

Senhor do Mundo