quarta-feira, 25 de julho de 2007

Fragmentos de nada


“Olhou-se ao espelho. Por momentos pareceu não se reconhecer. Os olhos negros que exibiam uma alegria constante mesmo em momentos maus, fitavam-no agora carregados de uma angústia e solidão que ele não queria ter dentro de si. A barba por fazer aconchegava-lhe o rosto e picava-lhe os dedos. O cabelo despenteado. O seu reflexo era-lhe desconhecido. Queria escapar mas sabia não ser capaz. Desejava esquecer mas não conseguia.

Sentia a raiva e o ódio apoderarem-se de cada músculo seu. Ela continuava ali, debaixo da pele. A picada incessante que não se consegue aliviar. A comichão logo onde o braço não chega. Já tinha sido magoado antes e ele próprio já tinha feito as suas vítimas. Mas isto era novo. Apaixonara-se perdidamente aos 18 anos. Tudo o que viveu foi intenso e marcante, mas o fogo extinguiu-se. Tal como começou, acabou. Passou a acreditar que dali em diante estaria salvo dos meandros do coração humano.

Durante anos, muitas mulheres se seguiram, mais do que as que gostaria de lembrar. Na maioria das vezes procurava apenas um momentâneo conforto físico. Alguém que lhe suavizasse as dores da sua alma. Outras vezes desejava apaixonar-se novamente, mas ao longo dos anos foi-se convencendo de que não era capaz. Ou simplesmente já não o sabia fazer. Talvez devesse ter valorizado aquele que julgava ter sido o seu único amor.

Até que ela surgiu. Num dia como qualquer outro cruzaram-se no supermercado. Só a tinha visto uma vez, sabia que tinha acabado de alugar o apartamento do 5º andar. Não lhe tinha prestado muita atenção e naquele momento em que a observava a escolher uma garrafa de vinho com um ar perdido, compreendeu porquê. Ela não fazia o seu tipo. Era o tipo de mulher para quem não olharia duas vezes. Era tão alta como ele, com um corpo cheio de curvas e os longos cabelos pretos amarrados num descuidado rabo-de-cavalo. Ele gostava delas com um compleição mais frágil, faziam-se sentir-se forte. Ofereciam-lhe a ilusão de ser adorado e até, quem sabe, amado. O eterno protector. Mulheres como ela faziam-no querer afastar-se. Pareciam não precisar de provar nada a ninguém, nem esperar nada de alguém. Ou não tinham qualquer vaidade, ou sabiam bem demais o poder que tinham e não necessitavam de o evidenciar.

Durante os meses que se seguiram o contacto tornou-se inevitável. Saíam ao mesmo tempo para o trabalho e sentiam-se obrigados a cumprimentarem-se. Os cumprimentos deram origem a conversas. Das conversas nasceram convites para jantar. Os jantares abriram caminho à amizade. Também ela se achava incapaz de voltar a amar, tinha sido traída e o amargo gosto do abandono tinha-lhe roubado a parte do coração capaz de sentir.

Sem que nenhum dos dois o compreendesse, a atracção tão pouco provável de início, foi crescendo, mesmo por entre os defeitos que faziam questão de apontar um ao outro. Ele era arrogante e convencido. Ela era fatalista e malcriada.

A sua imagem no espelho ia ficando desfocada. Precisava de comer qualquer coisa. Mas antes precisava de aniquilar qualquer vestígio dela. O seu calor ainda lhe percorria as veias. O sabor dos seus beijos ainda lhe invadia a boca. Bastava-lhe fechar os olhos para se recordar de cada sensação, de cada toque, de cada curva. Durante meses alimentaram-se um do outro, encontrando conforto para os seus corações vazios. Mas já não havia nada que o saciasse… apenas ela…

Odiava-a. Mulheres como ela tinham o poder de destruir um homem. Ela era a pior das mulheres. Pela calada das noites de amor e dos dias de cumplicidade, roubou-lhe a única coisa verdadeiramente sua, o seu coração. O tal que jamais bateria por outra mulher e agora se entregava a uma como nunca o havia feito na vida. De modo descomprometido e suave, obrigou-o a apaixonar-se por ela. Mas por cada batida do seu coração, o dela desligava-se mais um pouco, até ao dia em que deixou de bater para ele. Conforme entrou, assim saiu da sua vida, sem uma explicação, sem um raio de esperança.

Rasgou os lençóis. Tudo o que lhe lembrava ela, tinha de desaparecer. Algumas peças de roupa que ainda mantinham o seu cheiro. Os óculos de sol esquecidos em cima da mesa. Dentro da gaveta, um frasco de verniz preto. Os livros que lhe ofereceu. Os retratos dele que desenhou. O creme. Os sapatos. Uma meia perdida numa cadeira. O seu riso gravado numa mensagem de telemóvel. Via agora que se tinha habituado a tudo nela, principalmente às pequenas coisas. Até as paredes do seu pequeno apartamento pareciam mais bonitas e aconchegantes do que as suas. Sentia saudades daquela decoração em que nada combinava com nada mas tudo combinava com ela. Cada memória, cada momento a dois tinha de ser apagado para sempre. Talvez ao empacotar as suas coisas a conseguisse separar de si. Talvez ela simplesmente se evaporasse por entre cada objecto e de um momento para o outro deixasse de ter existido na sua vida.

Odiava-a. Amava-a. Odiava-a. Amava-a. Odiava-se por amá-la. O amor e o ódio entrelaçam-se nas fundações da essência humana. Durante quanto mais tempo aquele fogo faria questão de o consumir por dentro? Ele sabia que enquanto isso acontecesse, ela estaria sempre ali com ele. E assim, despejou todas as suas coisas em cima da cama e junto a elas adormeceu. Teria de esquecê-la, nem que para isso levasse a vida inteira.”

15 comentários:

Miss Vesper disse...

sometimes life just happens at a strange and overwhelming velocity and for such control we may think we have on ourselves and on our reactions to what happens... sometimes the gears just surpassed the 5th... and then we're lost... going on a freeway at 300 miles an hour and no breaks and no airbag...
and then: crash and burn...

maybe the voice that keeps having some kind of break is the one inside... letting us know that we are still here... even if it takes a lifetime...

even if it takes a lifetime... somethings are just carved into our skin and never leave... maybe we just have to get used to them hitching underneath the skin until one day we don't hitch anymore.. we know it's still there but then is just one more part of who we are... an ever evolving and growing craeture...

in depth words... hope it's not your heart that's going to take a lifetime... you deserve more.

kisses

Miss Vesper disse...

P.S: mine is all through your text...

thank you anita, thank you!

Anónimo disse...

Anita... I'm back!!!

Para dizer que já vivi uma história semelhante mas ao contrário do protagonista da tua história não a quis odiar ou esquecer. Porquê? Não sei... Porque sim...

Mas quis que ela me odiasse para que ela me esquecesse e não sentisse a minha falta. Quis sofrer pelos dois. Porquê? É como diz a música:

"I hurt myself today
to see if I still feel
I focus on the pain
the only thing that's real..."

Tinha de provar a mim próprio que o que sentia por ela era autêntico...

Acho que ela nunca percebeu... Já me deve ter esquecido. Eu não.

Miss Vesper disse...

jonny cash... love that song... feel exactly the same as it's lyrics...

Anita disse...

cris: concordo contigo… acho que tudo o que vivemos de bom e de mau, contribui para sermos quem somos… assim, espero que a confusão que se instalou na minha vida amorosa contribua com algo de positivo… talvez quando este beco sem saída em que conscientemente me meti desaparecer, a dor que daí resultar (sim, porque nada de bom pode vir desta situação) me transforme numa pessoa melhor…

Gostava de acreditar que mereço mais do que este buraco negro em que se tornou a minha vida, mas acho que apenas temos a vida que semeamos… como diz o António Lobo Antunes “cada Homem tem a idade para aquilo que nasce”… começo a acreditar que independentemente dos anos que viva, das pessoas que entrem e saiam da minha vida, esta não passará muito disto… se eu merecesse mais, esse mais já me teria encontrado… mas mesmo assim o meu coração vai batendo, enquanto a esperança que por vezes renasce das cinzas for deixando… é irónico que a esperança que me mantém viva é a mesma que me condena a autodestruir-me… porque quando eu imagino que não há mais maneiras de me punir e destruir, eu dou um passo em frente e invento outra… if only hope could die…

Beijinhos

Anita disse...

senhor do mundo: welcome back :) que tal estava a Finlândia?

Acho que todos nós, num momento ou outro da nossa vida vivemos uma ou outra variação desta história… as coisas simplesmente não resultam… e na maioria das vezes não é por falta de amor…

Há dias conversava com a catwoman sobre uma questão delicada que se enraizou de um momento para o outro na minha vida amorosa, e debatíamos o porquê das coisas acontecerem de maneiras que por vezes não compreendemos e em alturas em que pensamos não estar preparados… eu não acredito em destino, mas neste ponto tenho de concordar com ela, talvez as coisas aconteçam por uma razão, talvez haja um propósito para as pessoas que entram e saem da nossa vida e o modo como o fazem… talvez seja como a Cris diz, tudo isto aconteça para nos moldar enquanto pessoas… sem todas essas experiências não seríamos certamente as pessoas que somos hoje…

Tudo isto para dizer que talvez haja uma razão para que as coisas entre vocês tenham acontecido como aconteceram… talvez haja uma razão para que não a tenhas esquecido… a vida tende a ser estranha e na maioria das vezes empurra-nos em direcções que julgamos não querer e que afinal até precisamos… mas que sei eu? i’m just a romantic loser… i’m affraid i’ve been doing something wrong :s

Desejo que a estrada que percorres te leve a algo de bom… com ela, com outra ou sozinho… espero que encontres o que necessitas para acalmar a dor…

Beijinhos

Anónimo disse...

Cris... eheheh... Já li o Anjo Mudo e acho que te reconheci nesse livro. Há uma relação entre ti e o silêncio que um dia eu gostava de perceber melhor; se é que dá para perceber... ;)

Anita... Eu também não acredito no destino e não acho que todo este sofrimento tenha feito de mim uma pessoa melhor, pelo contrário... Consome-me a ideia de que nunca mais vamos poder ser amigos (sinto falta da companhia dela) e que ela me odeie... Ela nunca vai saber, não tenho como lhe provar, que eu apenas não queria que ela passasse pelo sofrimento que estava para vir... Será que o fiz por ela ou por mim? Essa diferença faz muita diferença e a dúvida é terrível...

Quanto à Finlândia, foi óptimo. Gostaram muito do meu trabalho e tive algumas ofertas de emprego, qd acabar o meu doutoramento (não sei se são ofertas reais mas pelo menos gostei da atenção...). Quanto ao resto, foi fantástico. Conheci muitas pessoas, muito diferentes: finlandeses, dinamarqueses, ingleses, franceses, alemães, eslovacos, americanos, espanhois, gregos... Joguei volei de praia, andei de barco, jantei em restaurantes finissimos (de t-shirt e tenis que era a unica roupa que levava ... eheheh), embebedei-me (ao ponto de não saber onde era o hotel que ficava mesmo por cima do bar... eheheh), enfim... recomenda-se...

Catwoman disse...

Eu não sei se as minhas experiências, especialmente as menos boas, me fizeram uma pessoa melhor ou não...mas sei que me fizeram ser a pessoa que sou hoje, com tudo o que de bom e mau isso tem - se magoar ou amar, tudo é fruto da mesma estrada, da mesma viagem. E aquilo que me faz conseguir amar (se o conseguir) vem do mesmo sítio que me consegue fazer magoar os outros, mesmo os que amo...No meu blog falei do Grande Gatsby, um dos meus livros favoritos. O que mais gosto na personagem principal é ser um sonhador, alguém que pensou conseguir apagar o passado e começar de novo em nome do amor.Um idealista. E gosto tanto dele precisamente por saber que está condenado ao fracasso...e porque admiro a pureza do seu sonho.Tábua rasa é algo que não existe...quanto mais não seja, mesmo que as provas físicas sejam inexistentes, o passado permanece vivo em nós, em cada fibra, em cada músculo, na pele, no sangue, na alma...somos uma enorme célula aglutinadora de informação, ela passa a fazer parte do nosso código genético, como uma impressão digital. Podemos queimar todas as fotografias, rasgar todos os diários, está tudo aqui...

Adorei o texto, mais uma vez. Gosto especialmente do final :)Interrogo-me se eu seria assim...se iria querer esquecer essa pessoa...bem assunto para outro post lol

Beijocas

João Roque disse...

Olá Anita
depois de uma semana de ausência, cá estou de novo.
E que texto venho aqui encontrar!
Minha amiga, não sei se é só ficção, se há aqui partes de ti mesma, nem me interessa. Apenas refiro que está muito bem escrito, e que revela fortes sentimentos.
Mas, questiono-me há já algum tempo sobre a problemática de várias amigas minhas, aqui do blog, como a Cris, a Catwoman, e agora tu, no que respeita às afeições; será que eu sou uma excepção, com a minha felicidade? Penso que não, pois há caso entre amigos meus, também do blog, que revelam um amor bonito, como o Mrtbear, o Luís do Gayfield, o João do Sin, e seus amores, é claro, entre outros que agora me escapam.
Que se passa com vocês, meninas???????
Vamos lá a pôr o coração a caminho do ser amado e vamos amar!!!
Beijoquitas.

Anita disse...

catwoman: interrogas-te se serias capaz de esquecer a tal pessoa especial… quanto a mim, eu sei… eu não esqueço nada… jamais… ultrapasso mas não esqueço, e tu que me conheces bem sabes que assim é… mas também não sou rancorosa ou coisa semelhante, simplesmente “habituo-me” à situação e tento recomeçar a caminhar, mas não esqueço… forgiven not forgotten…

concordo contigo, todo o passado faz parte de nós, mesmo que o queiramos apagar… temos de aprender a viver com ele debaixo da pele, mesmo que haja momentos nele que são difíceis de ultrapassar… não sei bem que tipo de pessoa sou hoje… sei que sou diferente de quem era há alguns anos atrás, mas não sei se melhor ou pior… só posso avaliar isso nos meus objectivos, nas coisas que aprendi, no que amo, no modo como trato as pessoas e em tudo isso, acho que sou melhor do que era, o que não me torna, necessariamente, numa boa pessoa…

apenas gostaria que o meu passado tivesse sido mais luminoso, que o presente fosse bom e o futuro não se apresentasse tão vazio… como podes ver, aquela calma de que te falava no outro dia está a começar a desaparecer…

Beijinhos

Anita disse...

meu querido pinguim… welcome back :)

quanto ao meu texto, ainda bem que gostaste… há partes de mim em todos os pormenores do meu blog, é só olhar com atenção ;)… eu sou aquela que está escondida entre as linhas de cada texto, os acordes de cada música, os frames de cada vídeo…

fico muito contente que estejas tão feliz que nos queiras contagiar a todos com essa alegria suprema… conheço-te há pouco tempo e apenas através dos blogs, mas mesmo assim posso dizê-lo com sinceridade… mereces cada gota dessa felicidade…

já no que diz respeito à problemática do trio maravilha que referiste, apenas tenho o direito de te falar na minha parte… não acho que sejas excepção por seres feliz, certamente existem muitas pessoas felizes no mundo, mas também acredito que o grupo é bem pequeno quando comparado com o resto de nós que vai caminhando pela vida sem qualquer vislumbre desse sentimento… talvez simplesmente a felicidade esteja interdita a alguns de nós… para mim, o caminho do amor sempre foi uma estrada solitária sem fim à vista… talvez tenha alguma característica na minha personalidade que funciona como repelente… talvez não tenha nascido para ser amada… ou talvez seja por ter a tendência para escolher homens emocional e/ou socialmente indisponíveis… who the fuck knows!... não me entendas mal, não quero soar melodramática, é apenas uma sensação cá dentro que com o passar do tempo se vai tornando numa certeza…

eu já amei antes e tenho a certeza de que o farei novamente mesmo que não queira, porque sobre estes sentimentos não temos qualquer controlo… mas tentarei lutar, porque “pôr o coração a caminho do ser amado” e vê-lo regressar sozinho e completamente espezinhado é algo que certamente não conseguirei suportar muitas mais vezes…

Beijinhos

Anónimo disse...

adorei o texto... em cada linha, em cada sopro...

pôr o coração a caminho do ser amado” e vê-lo regressar sozinho e completamente espezinhado é algo que certamente não conseguirei suportar muitas mais vezes…

eu diria mesmo: Mais Nenhuma....

beijinhos

Anita disse...

batcave: olá!... o meu estaminé tem visitante novo... hehe!... és muito benvinda ou benvindo... é que com esse nick é difícil definir lol... de qualquer das formas as boas vindas mantêm-se ;)

fico contente que tenhas gostado do texto... é sempre bom saber que há quem entenda aquilo que tentamos dizer...

neste meu pequeno e humilde espaço, fala-se de tudo ou pelo menos tenta-se ;), por isso agora que entraste nos meus domínios terás de me fazer muitas visitas e comentar sempre que possível ou a punição será terrível lol :)

beijinhos

Catwoman disse...

Ai Pinguim, se conseguisse responder a essa tua pergunta, tinha muita coisa resolvida lol Mas tento seguir o teu conselho ;) Procuro respostas ou pelo menos procuro ter menos perguntas...não sei...vou dando notícias da viagem ;)

Beijoquitas

Anónimo disse...

Vim mais atrás... ver outros textos
;)