quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O Verão das nossas vidas...


"Vejo-te nos pormenores. No sol que me queima a pele. No cheiro da terra acabada de lavrar. No som dos cascos dos cavalos. Na brisa que acaricia os cabelos. No piar dos pássaros na sua alegria de viver por entre as nuvens. Voltei… e tudo me lembra de ti… tudo me recorda de mim… o eu que fui e se perdeu por entre as curvas da vida…

Penso na amizade que nos uniu e no compromisso que nos separou. Todos os verões te encontrava quando passava as férias na casa da minha prima. Não nos demos muito bem de início. Acho que te cheguei a dar uma bofetada numa qualquer altura e tu fizeste de propósito para que eu caísse de um cavalo que fazia questão de montar sozinha e esfolasse um braço. Eras mais velho três anos e por isso consideravas-me uma pirralha. Daquelas que pouco fala e cora por tudo e por nada.

A minha prima achava-se loucamente apaixonada pelo teu irmão e sempre que se encontravam, éramos obrigados a ir também. Ainda hoje não sei bem porquê, uma vez que assim que se encontravam desapareciam da nossa vista. Não sei o que me irritava mais, se ter de servir de vela ou ter de o fazer contigo.

Eras o único rapaz da aldeia que fazia questão de me ignorar. Num meio pequeno, a cara nova da cidade torna-se o centro de qualquer conversa, mesmo que nada faça para cimentar qualquer mistério. Mas sempre que um comentário mais picante me era dirigido, tu olhavas-me como se a culpa fosse minha, como se o simples facto de existir e de me sentar à mesa do café da vila me tornasse numa provocadora.

Ao começo tentei conversar contigo, mas limitavas-te a olhar para mim com um ar extremamente analisador que me irritava, assim, decidi que o melhor a fazer era ignorar-te. Era difícil. Não havia local para onde olhasse onde não estivesses. Fiquei chocada quando trocaste comigo mais do que meras palavras de circunstância. Disseste que eu era pura demais para a parte da minha família que ali vivia. Mandei-te à merda na mesma hora. Discutimos tantas vezes que perdi a conta. Sabíamos pouco de sexo nessa altura, mas nenhum de nós conseguia ignorar a tensão sexual que se ia criando entre nós. É impossível virar as costas à química. Mexíamos um com o outro. O resto era apenas ruído de fundo. Assim, esgotávamos essa tensão da melhor maneira que sabíamos. Preferíamos alimentar a raiva do que rendermo-nos ao que acontecia dentro de nós.

Não sei porquê, as coisas mudaram. Deixaste de ser tão calado e eu deixei de ficar tão atrapalhada na tua presença. A verdade é que às vezes me intimidavas. Aos poucos começámos a partilhar piadas e histórias e a nossa inimizade deu lugar a uma cumplicidade a que ninguém era diferente. Acordaste-me por dentro.

Faltavam duas semanas para as minhas férias acabarem. Em breve teria de te deixar e voltar à cidade. Talvez andasse preocupada com isso ou simplesmente tivesse os meus pensamentos todos perdidos em ti, mas numa tarde em que regressávamos de apanhar canas, ao descer o monte, escorreguei e torci o pé de tal maneira que fiquei uma semana sem conseguir andar. Recordo os meses intensos de tratamentos para conseguir corrigir o que aquela queda destruiu. Mas sempre que penso nisso, só consigo sorrir. Foi aí que nos conhecemos. O que julgávamos saber um do outro era apenas a superfície que permitíamos partilhar com os outros. Alteraste os teus horários e rituais para me fazer companhia naqueles dias de inércia. Sabias que não podia contar com a minha prima em todo o egoísmo do primeiro amor. De início não queria que me viesses visitar com tanta frequência. Deixavas-me nervosa e detestava as insinuações que corriam na boca de todos. Éramos tão novos e mesmo assim as pessoas já imaginam maldade e perversão na nossa relação. Tornámo-nos bons amigos e quando me fui embora doeu-me como se nunca mais te fosse ver. Aos 13 anos tudo nos parece o fim do mundo. Tudo é definitivo e qualquer local que não fique no nosso caminho até à escola parece-nos do outro lado do mundo.

No verão seguinte voltei… o coração batia descompassado e o meu estômago revirava-se em antecipação. Sabia pelas cartas que me tinhas escrito, que me esperavas. Eu estava diferente e tinha receio que, subitamente, conforme cresceu, tudo se desvanecesse. Aos 14 anos eu já tinha o corpo pelo qual a maioria das mulheres tem de esperar até aos 17. E se não gostasses? Sentia-me inimiga das minhas curvas.

Desta vez não perdemos tempo. Assim que nos vimos, puxaste-me pela mão e afastaste-nos do mundo. Se fechar bem os olhos ainda me recordo do nosso primeiro beijo. Rápido e desajeitado contra a parede das traseiras da tua casa enquanto ao longe alguém chamava por ti.

Não nos importávamos com o que pensavam de nós. Recusávamo-nos a olhar para o calendário sabendo que cada dia que passava era um dia a menos. Aprendemos a amar-nos à distância e durante esse tempo foi o que fizemos. Todas as férias, feriados e fins de semana grandes, eu voltava para ti, mas enquanto tu permanecias o mesmo, com as mesmas ambições, eu ia mudando. Sempre me disseste que me querias do teu lado. Não interessa a idade que temos quando sabemos o que queremos, dizias. Mas o filme que fazias na tua cabeça, era escrito, produzido e realizado por ti. Eu limitava-me a interpretar o meu papel. Para ficar contigo, tinha de virar costas a tudo e morar na tua aldeia. Uma mulher apaixonada pela cidade só faz uma mudança dessas por um grande amor. Mas eu nunca te amei assim. Acho que nem foi amor aquilo que alguma vez senti por ti.

A discussão passou a ser a nossa forma de comunicação. Talvez sentíssemos a brisa gelada do fim. Até que um dia, no meio da gritaria me levaste a admitir que não te amava. Nesse momento perdi a batalha. Sabia-te orgulhoso. A partir daquele momento eu morria para ti e mesmo que um dia entendesses o meu ponto de vista e até me perdoasses, preferirias a tua destruição a deixar-me reentrar no teu coração.

Durante os anos que se seguiram deixei de ir à aldeia com tanta frequência. As poucas vezes que lá voltei foram visitas curtas. Nunca nos cruzámos. Soube que casaste de um momento para o outro e que hoje estás divorciado. A última vez que aí fui, há dois anos, disseram-me que tinhas ido trabalhar para Espanha e não tencionavas voltar. É curioso que tenhas abandonado tudo, quando me dizias que eu tinha de ir morar contigo um dia, porque não querias abandonar a tua terra. Só lá eras tu mesmo. E agora, no entanto, tinhas partido… Mas eu sabia que voltarias…

Este ano, sem saber muito bem porquê, decidi regressar. Depois de matar as saudades da família, caminhei por entre as ruas e os campos tão diferentes e, no entanto, tão iguais. E lá estavas tu. Vi-te aproximar e naqueles poucos segundos que nos separavam, pensei em mil e uma formas de começar uma conversa. Há dez anos que não nos víamos ou falávamos. Ainda haveria alguma coisa para dizer? Tentei um sorriso mas mantiveste-te sério, com o mesmo olhar penetrante que anos antes me fazia vibrar por dentro. Estás na mesma. Talvez os braços estejam mais fortes e o cabelo mais claro, queimado pelo sol. De resto, pareces-me o mesmo rapaz que tão bem conheci um dia, apenas os teus olhos denunciam os anos e a dor que acumularam. Sempre soube que um dia terias a coragem de aqui voltar, disseste. Nunca foste muito bom a fazer conversa de chacha. Sempre foste directo e conciso. Talvez por isso as pessoas não gostem tanto de ti como mereces que gostem. Numa só frase anulaste os dez anos que vivemos separados e fizeste-me sentir a mesma miúda de 16 anos que sonhava alto demais. Vê só onde os meus sonhos me levaram! Estou mais perdida agora do que naquela altura. Devias sentir-te vingado.

Dói-me olhar para ti e ver a tua própria dor brilhando no verde dos teus olhos. Nunca fomos um do outro, mas entre nós, durante estes anos, criou-se um enorme “se”… Se não tivesse acabado com as tuas fantasias românticas no meu desmedido desejo de mais e mais. Se tu não fosses tão intolerante e egoísta e tentasses entender a minha posição. Se… Se… O “se” gastou-se com o tempo… já nada sobrou…

Não me arrependo da minha decisão. Éramos dois e eu apenas podia escolher um. Escolhi-me a mim. Não sei se foi a escolha acertada mas foi aquela que me permitiu olhar em frente, mesmo que precariamente. Não te amava então e não te amo agora. Mas tenho pena de saber que mesmo de uma forma pequena e inocente, tenho uma percentagem de culpa e responsabilidade pelo teu sofrimento. Magoa-me na carne ver a vida fabulosa que podias ter tido, transformada em pedaços de coisa nenhuma… apenas ilusões e sonhos esbatidos… Se ao menos esquecesses tudo e seguisses em frente. Talvez um dia o faças e só espero que no teu caminho encontres uma miúda de 16 anos, com o rabo-de-cavalo a abanar ao vento, fazendo balões com a pastilha elástica, os olhos castanhos grandes e expectantes, a boca aberta num sorriso, os calções curtos feitos de umas calças de ganga velhas, o top preto com o símbolo da paz na frente, os ténis cronicamente desatados e as unhas pintadas de cor de rosa, que te estenda a mão e te ame como o rapaz de 19 anos que ainda habita nesse corpo batido e que merece ser amado. Talvez reencontres a miúda que fui e te permitas novamente sonhar."

6 comentários:

Anónimo disse...

Queria deixar um coment�rio que fosse um pouco mais que "passei por c�..." ou "bonito, gostei..."

Na verdade gostei realmente desta hist�ria e da forma contagiante como � contada.

N�o sei se foste tu a autora, ou se foste personagem no "epis�dio"... o que sei � que a hist�ria � bonita e gostei verdadeiramente de a ler.

Parab�ns!

Anita disse...

joão... mt obrigado pela tua visita e pelas simpáticas palavras :)

para o bem ou para o mal, fui eu a autora da história, qt à minha participação directa na mm, deixo à imaginação de cada um dos meus queridos leitores... n quero limitar a interpretação de ninguém...

Beijinhos

João Navarro disse...

É uma tentação não "roubar" esta história :)
Dava bem para um tema especial
Um beijo e até breve
CN

João Roque disse...

Querida Anita
estou perfeitamente siderado...li isto de um fôlego, como se de um romance empolgante se tratasse. É muito bonito, e não te posso dizer mais do que isto: gostei e gostei muito.
Obrigado por partilhares connosco estesbelos tempos.
Beijoquitas.

Anita disse...

CN: fico sensibilizada que a minha pequena história possa servir de inspiração para alguma coisa... se algum dia decidires criar esse tema especial, não te esqueças que gostaria de o ouvir...

Beijinhos

Anita disse...

pinguim: welcome back... é bom ter-te por aqui... nem imaginas como me sinto honrada com os teus elogios... muito obrigado pelas tuas palavras...

Beijinhos