terça-feira, 21 de outubro de 2008

A derrota anunciada


A tinta secou e misturou com ela todas as palavras que habitam o peito. A areia da minha alma mistura-se com a cal dos meus dias e transforma-se na minha cruz. O pecado consumado derramou a última gota de sangue deste copo vazio. Nunca matei a sede, e o copo rachou.

Viveste em mim por pouco tempo. Por muito que te pedisse, nunca me deixaste conhecer o teu coração e a tua alma. A espera há muito que acabou, deixando apenas braços vazios e pedaços de esperança fora de validade, perdidos por entre as vielas do meu caminho. Escondeste-te por detrás de um passado há muito morto e que apenas tu ainda alimentas. Preferiste a solidão à promessa de algo que nenhum de nós soube ou quis identificar. O ponto nas nossas estradas que permitiu o nosso cruzamento apagou-se rapidamente. A terra desvaneceu-se debaixo dos nossos pés e antes que ela nos engolisse, decidimos continuar o nosso caminho. Infelizmente para lá daquele ponto, não haveriam mais cruzamentos. As estradas separaram-se para não mais se encontrarem.

Gostaria de te ter visto sorrir com gosto uma vez. Pintaria um quadro com o teu sorriso, para que nunca se apagasse e o pudesses ver sempre que te sentisses triste. Mas sempre fui uma má pintora. Sempre pintei os meus sonhos e não a realidade. O sorriso que desenhei no teu rosto era lindo mas não me pertencia. Apesar de tudo, gostaria de saber que sorris. Gostaria de te saber feliz e em paz.

Há meses que não pensava em ti. Não sei porque o faço agora. Cilindraste-me à chegada. Querias tudo mesmo não o sabendo. Assustaste-me. Pediste-me que me traísse a mim mesma. Exigiste que negasse tudo aquilo que a minha mente me dizia. Fi-lo. Deliberadamente voltei as costas a mim própria, desejando que o futuro não me desse razão. Preferi acreditar em ti mesmo quando cá dentro sabia que não o deveria fazer. Sabia que procuravas em mim uma substituta para algo que julgas ter perdido mas que, no fundo, talvez nunca tenhas precisado. Até hoje não sei porque me escolheste a mim. Se a tua ideia sempre foi alimentar mas nunca substituir, não precisavas de mim. Sabia que o teu entusiasmo avassalador e pouco natural não poderia durar para sempre. Havia uma inquietude e um desespero em ti que me deixavam pouco à vontade. Mais cedo ou mais tarde acordarias e verias a realidade como ela era. Estavas a usar outra pessoa para combater os teus medos por ti. E eu sempre soube que quando o pano caísse e tivesses de escolher entre essa pessoa e esses medos, escolherias viver assustado. Sempre soube que partirias com a mesma rapidez com que tinhas aparecido. Sem explicações nem desculpas. Preferirias o teu passado ao teu presente e com isso cancelarias muito do meu futuro. Não te condeno por isso. Não me surpreendeu o dia em que não regressaste. Mas nunca esperei que me magoasse tanto. Destruiu qualquer coisa que não sei identificar. Sobrei só eu. Um remendo num pano velho e sem graça.

No fundo, talvez deva agradecer-te. Não me deixaste sonhar, logo quando era o que eu mais queria. Voltaste a mostrar-me as únicas realidades que me são familiares, abandono, solidão e recomeço. Graças a ti não sei se alguma vez voltarei a virar as costas, deliberadamente, às verdades que habitam as minhas veias. Deixei de acreditar. Tudo o resto é apenas nevoeiro. O que sobrou de mim consome-se por entre os anos da minha minúscula existência em ínfimas páginas de papel. Deixaste-me o peito cheio de palavras. Essas serão a minha eterna companhia, até ao dia em que este se feche para sempre e encerre no seu interior tudo o que a vida não me permitiu ouvir nem dizer.

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