quarta-feira, 18 de junho de 2008

A essência de um grito


"A voz esconde-se no fundo da garganta como um prisioneiro em fuga. Se engolir em seco consigo senti-la atrás da língua, logo depois de uma gargalhada obscurecida por uma dor que o tempo cimentou.

Por detrás da minha voz está guardado um grito espinhoso há muito prometido mas infinitamente adiado. A boca sangra com a violência do animal enraivecido que a habita. O chicote de dor alimenta o meu grito, tornando-o indomável e imprevisível. Quero gritar, quero tirar de dentro de mim este cancro de mágoas que me come por dentro como uma infecção desconhecida. Quero que este universo de desejos incompreendidos e desilusões de mármore desapareçam com a pele que me cai.

Perdi a minha voz por entre as palavras que ofereci em vão. Agora sobrou uma espécie de gemido que ninguém ouve. Sinto crescer no peito e subir pela garganta todo o bolo amargo das injustiças e traições que alimentam a minha raiva e minam a minha confiança. Quero sacudir dos meus ossos todas as lembranças que por lá ficaram cravadas como despojos de um conflito que o tempo apagou. Mas o campo de batalha continua activo com uma guerra que há muito se perdeu. Cada inspiração ressuscita um soldado que se recusa a morrer sem que lhe expliquem por que viveu. Cada luta armada não é uma vitória mas sim um tormento sem fim à vista. Mas continuamos a lutar, mesmo que saibamos que há muito o nosso papel nesta guerra deixou de ter importância. As batidas cardíacas há muito que perderam a vitalidade de outrora. Fomos consumidos pelo nosso desejo de nos conquistarmos por inteiro… sem dúvidas… sem remorsos… segurar nas mãos o interior mais profundo que nos habita.

Caminhamos na direcção que o sol aponta, tentando encontrar-nos em cada esquina, livres da culpa de sermos quem nunca desejámos ser. Quero fazer as pazes com a pessoa que me olha quando me cruzo com um espelho… a mesma que se derrama e esconde por entre todas estas palavras sem sentido…

O fumo negro escurece a vista. Para trás ficaram apenas os terrenos queimados por paixões que arderam depressa demais. Amores que o tempo enterrou na memória, esperando que deles floresçam as sementes de uma vida nova. Segredos confessados sob tortura de um amor não correspondido. Deslumbramentos irresponsáveis e destruidores que nos levam à beira do precipício e nos coagem a saltar para o conforto vazio e punitivo de frases bonitas e sorrisos ensaiados.

Quero que o sangue escorra por entre cada inflexão do meu grito e se transforme em vida e esperança, enquanto o mundo renasce em frente dos meus olhos e o meu grito se dissolve por entre a bruma dos dias. Cada entoação de sofrimento e raiva será música que a brisa transportará para lá de qualquer pensamento. Sentirei o medo, a frustração e a indiferença desaparecerem por entre uma espera que aprenderei a suportar.

O corpo maltratado recuperará e a voz voltará a ser apenas minha. A garganta deixará de doer, as mãos deixarão de tremer e o peito deixará de se contorcer em agonia. O meu grito jazerá para sempre por entre túmulos de arrependimentos vãos e finalmente a minha alma poderá regressar, deslizar por debaixo da pele e aconchegar-me cada nervo. O calor regressará e o coração voltará a bater com a fúria e convicção que sempre possuiu. Cada alegria será um abraço pronto para reconstruir cada pedaço do meu corpo e, um dia, quando o renascimento doloroso e lento tiver finalmente terminado, a essência do meu grito elevar-se-á das profundas e levar-me-á pela mão, em direcção à paz de espírito… a única casa que sempre quis."

3 comentários:

Anónimo disse...

Há sempre quem ouça a nossa voz, e não são necessárias multidões, antes um só que nos compreenda bem. Fica sempre connosco o que vivemos, constrói-nos, edifica-nos, mesmo no que perdemos. Beijo!

Joana Roque Lino disse...

o texto é muito tocante, anita. gostei muito e diz-me muito. beijo grande.

eu) disse...

desculpa...doeu!