quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Balança


“Gostava de te ver feliz.”

“E quando é que eu alguma vez fui feliz?”

Silêncio. Imenso.

Há coisas que não se dizem. Primeiro, porque há segredos que jamais se partilham. Depois, porque quem o ouve pode não entender e pedir uma explicação que disseque qualquer sentimento original. E por fim, porque poderá não ser a verdade. No fundo limitamo-nos ao dia a dia, mesmo que olhemos para o passado com regularidade. Se atravessamos um bom momento, até as coisas más do antigamente parecem ter um sabor especial. Dizemos, foi mau mas levou-me onde estou hoje. Se vivemos num sofrimento que começa a desenhar-se perpétuo, nada do que passou tem brilho. Borramos a carvão todas as memórias. Nem sequer sentimos saudades dos velhos eus que os anos viram passar. Todos foram morrendo deixando apenas pó negro que nos cega.

O meu olhar era desafiante ao mesmo tempo que mordia a língua. Era uma interrogação difícil de se fazer, especialmente se o comentário feito até tinha boa intenção. A mensagem era clara: A realidade é esta, aceita-a, e jamais te lembres de ter pena de mim. A pena oferece-se a quem dela precisa e merece. Guarda-a para aqueles cuja má sorte lhes debilita a vida. Aqui, será apenas desperdício. Não sabias? Sou a rainha do desperdício. Já deitei fora tanta coisa que valia a pena enquanto guardava a fruta podre. Ririas se soubesses. Tenho prazeres perversos e já não sei viver sem eles, como o de entregar o melhor de mim a quem apenas o vê como uma coisa boa onde limpar os pés. Não me contento com esboços. Prefiro o desenho verdadeiro mesmo que não seja nada bonito. Pelo menos contemplei-o antes de o tempo e o aborrecimento o destruírem. Tudo ou nada. Promessas infinitas têm o sabor do fel. O bolo com tão bom aspecto e que nos dá vómitos à primeira garfada.

A minha memória fotográfica e sensitiva vasculham tudo o que foi sendo armazenado e durante minutos penosamente curtos, revejo os momentos com que a vida me marcou. Nem tudo foi muito mau. Mas nada foi muito bom. Simplesmente foi. Aconteceu. E o que restou, decidi moldar à minha maneira. Já morri tantas vezes na praia, que pedi a uma rocha para guardar-me o lugar.

Afasta de mim essa tua felicidade. Só podes ser uma aberração. Ninguém se sente assim 24 horas por dia. Presumo que tal como a infelicidade, a felicidade não se sinta a cada momento. Torna-se um hábito como respirarmos. De vez em quando recebemos uns empurrões que nos fazem perceber qual o prato da balança que nos acomoda. O infeliz é-o por hábito. O feliz é-o por não saber ser outra coisa. Não invejo a tua felicidade. Aliás, nunca fui de invejar nada. Nem sei porquê! Mais um defeito de fabrico que o tempo não remendou. Mas tenho de confessar que me irrita. Se calhar nem sabes que o és, limitas-te a viver a vida, mas quem te vê e quem te ouve sabe que és feliz. Não o conseguirias esconder nem que o tentasses. Não me custa saber que há quem seja feliz, muito pelo contrário. Ainda bem. Mas dói-me olhar para o outro lado da balança e ver que, por vezes, o prato contrário fica tão próximo que consigo tocar-lhe com a ponta dos dedos. Mas a âncora que tenho dentro do peito mantém-me firme e os pés nem vacilam. Sempre quis os pés bem assentes no chão. Agora deixei de conseguir caminhar. Olho noutra direcção, desenho um sorriso e preparo-me para outro dia. Nada disto é novo, pergunto-me porque será que ainda não me habituei.

Silêncio. Imenso. Sempre."


segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

365 dias depois...

"Ano novo. Vida velha. Horas infinitas repletas de pequenos vazios tão familiares como o teu rosto. Não consegues evitar olhar para trás e procurar vestígios de vida no ano que acabou. Por muito que penses o contrário, ela existe. Não viveste os momentos com que sonhaste mas viveste outros. O coração bateu mesmo que lentamente. Sorriste inúmeras vezes. Gargalhaste umas quantas. Choraste mais vezes do que consegues contar. Sentiste. Mesmo sem o desejar, sentiste. Não és imune a quem te rodeia. Preferias que assim fosse. Seria mais fácil encarares o vazio sem que nada conseguisses sentir. Não haveria tristeza. Não haveriam delírios com uma felicidade que só os iludidos conquistam.

Nunca gostaste de passagens de ano, nem mesmo quando tinhas algo a desejar. Aquela mudança no relógio realçada com explosões de alegria e raios de luz dos fogos de artificio, sempre te angustiaram. O fim de algo. O começo de mais uma jornada incógnita. Com o passar dos anos foste-te apercebendo do teu erro. Pouco vias quando ousavas olhar para trás e já nada querias quando pensavas em frente. Cada passagem de ano vias-te com os mesmos pensamentos e desejos que no ano anterior. Há precisamente um ano atrás, querias acreditar que talvez nesse novo ano a tua vida finalmente começasse e pudesses ser feliz de uma forma que fizesse sentido, mesmo que mais ninguém o entendesse. Mas aqui estás tu em modo repetitivo. Mais uma vez… nada…

Há quem celebre mais um ano que acabou e as coisas que com ele vieram. Outros anseiam pelo que agora começa, sonhando com visões de encantamento. Ouves o exaltamento de todos à tua volta, mas não te mexes. Gostarias de ignorar a data, mas não consegues. O teu espírito destrutivo força-te a analisar o ano que agora te deixa. Estás exactamente onde estavas há um ano atrás. Constatas que durante este ano perdeste a fé em alguns dos teus amigos e já não acreditas que alguma vez os voltes a ver. As suas vidas levaram-nos para longe de ti. E onde eles estão não consegues alcançar. No entanto, descobres amigos onde menos poderias esperar, logo no momento em que te apercebeste que o teu caminho era um caminho solitário. Não consegues evitar que eles se apoderem dos teus sentimentos. Mas tens medo. É mais forte do que tu esperar pelo momento em que te abandonarão. É tudo o que conheces. Do amor não esperas mais nada. Deixaste de aceitar migalhas. Por muito que te magoe já sabes o caminho de cor e salteado. Descobriste-o no dia em que te destruíram. Ainda julgaste poder contrariá-lo, mas sabes hoje que tal é impossível.

Sofres mas preferes esconder cada gota de sofrimento, para que ninguém se aperceba dele. É a tua tortura preferida. No meio do peito tens uma ferida que não sara. Cada golpe que a vida te oferece é desferido sempre no mesmo local, para que jamais possa cicatrizar. Enganaste-te ao julgar que te habituarias a ela e que por isso deixaria de doer. Dói cada vez mais e rouba-te das forças que necessitas para sonhar. Quando convives com as pessoas de quem gostas esqueceste da dor, mas ela permanece lá e atinge-te como uma onda quando te vês novamente só. Ela é soberana e rouba-te um bocadinho de ti a cada dia que passa. Paras por um momento e olhas para a chuva que cai. Tu sabes a verdade mesmo que tentes escondê-la. Possuis uma ferida mortal. Morrerás por ela, mesmo que o teu coração continue a bater e os pulmões se encham de ar. O teu corpo muda. Todos os dias descobres um osso novo. Os teus olhos vivos vão perdendo o brilho de outrora, tornando-se baços e bocejantes. A tua alma deseja abandonar-te para não mais voltar. Mas tu não deixas. Tratas da ferida e procuras acalmar a sua raiva. Ainda não, dizes. Ainda não. Permaneces à espera… não sabes de quê nem para quê, quando no fundo sabes que nada virá… mas não desistes de esperar… ainda…"